Casulo
Maurício Correia de Mello
Setembro de 2007
Não sou capaz de registrar estas palavras em papel. Só me resta decorá-las uma por uma, na esperança de que um dia isso seja possível. Como um diário, escrito na minha mente. Claro que, assim, ninguém tem acesso. O meu diário não poderia ser mais íntimo. Meu cérebro é uma caverna escondida, esperando ser descoberta por arqueólogos.
Estamos na praça de alimentação de um shopping center. As pessoas passam por mim sem me olhar. Não é como se eu fosse uma peça de decoração, pois esta é feita para ser notada. Além disso, os vasos e cadeiras que nos circundam são obstáculos. Às vezes as pessoas tropeçam nestes objetos. Contudo não tropeçam em mim. Desviam o olhar e o corpo. Admito que não deve ser uma visão agradável, uma pessoa torcida feito uma árvore do cerrado, balançando sem vento, a face como um nó na madeira.
Só ele me vê. Minha cabeça pende imóvel, mas minhas mãos tremem. Ele se agacha e começa a puxar assunto. Pergunta-me as horas. Depois indaga se eu tenho fogo. Eu sorrio por dentro. Convida-me para dançar. Minha enfermeira grita com ele que eu não sou um brinquedo, que é uma falta de respeito. Mas ele a ignora e, ao som ambiente, começa a rodar minha cadeira com agilidade. A enfermeira tenta impedi-lo mas ele se desvencilha. Quando ela repara o riso no meu rosto, desiste e apenas fica observando. Eu não consigo falar nada. Não tenho controle dos meus músculos, nem para falar, nem para teclar num computador. Consideram-me deficiente mental. Mas eu apenas estou aprisionada num corpo inútil, que sequer permite minha comunicação com o mundo exterior. Aquela dança se completa na minha mente, onde estou de mãos dadas com meu par. Meus pés são desenterrados como raízes arrancadas. Não estou mais na paisagem árida do cerrado. Estou ao pé de uma cachoeira onde ouço a música de uma orquestra de pássaros. Todos param para admirar a leveza e precisão de nossos passos.
Ele me conta que basta olhar nos meus olhos para saber o que eu quero dizer. Afirma ver a pontinha da asa rompendo o casulo. Diz para a enfermeira que me conhece das sessões de fisioterapia. Eu não me lembro. Continua a se encontrar comigo até que meus pais descobrem. Dizem provalmente tratar-se de um aproveitador, de olho no dinheiro da família. Tenho vontade de gritar com eles, defendendo-o. Ao invés disso apenas emito um ruído grotesco. E lágrimas. Meus pais afirmam que ele está me fazendo mal. Não conversam comigo, pois acham que eu não entendo. Falam para a enfermeira. Proibem-me de vê-lo. Mas a enfermeira está convencida de que não há mal e não respeita a ordem.
Ela me deixa regularmente no apartamento dele e vai me buscar depois de duas horas. Às vezes passa pela minha cabeça ele ser algum tipo de louco, com um desvio de comportamento. Mas ele me coloca na banheira morna, depois me enxuga e massageia meu corpo, especialmente minhas pernas, até eu parar de tremer. E faz amor comigo delicadamente.
Passamos vários meses nesses encontros. Até que ele conta não me amar mais. Diz perceber meu sofrimento mas não poderia ficar comigo se não fosse por amor. Afirma ter-se apaixonado, mas esta paixão passou. Diz que é comum as pessoas terminarem relacionamentos e sofrerem. Comigo não poderia ser diferente.
É melhor a sinceridade. Mas encharco meu travesseiro. Não é só tristeza. Afinal, sofrer também é estar vivo. E só quem teve alguém ao seu lado pode vivenciar o luto da separação. Quando, passadas algumas semanas, sinto o bebê chutar, penso na ironia. O casulo não é mais tão inútil. Acalenta o corpinho de uma criança perfeita. Se ela tiver um pouco de sorte poderá, como o pai, enxergar asas coloridas através da seda cinza.
Um útero, ou um casulo de seda cinza, espera sempre gerar a mais bela borboleta, a que tenha a cor mais bonita no céu e que alcance o maior vôo. Por isso, a borboleta, assim como a criança que será gerada poderá, se quiser e for sua vontade, voar e criar um céu de estrelas. Adorei o texto, inspirador!!